The Cats of Mirikitani: a insegurança dos nipo-americanos na 2ª Guerra Mundial

Uma análise do documentário à luz das teorias críticas de Segurança Internacional

06/09/2016 - Thiago Bittencourt

Jimmy Mirikitani, o personagem principal do documentário The Cats of Mirikitani. (Créditos: Hiroko Masuike | Reprodução do material de divulgação do filme)

No documentário The Cats of Mirikitani 1 (2006), Linda Hattendorf apresenta a história de “Jimmy” Mirikitani — cidadão californiano que nasceu nos anos 1920, porém foi enviado a campos de concentração durante a Segunda Guerra Mundial, pois tinha ascendência japonesa. A cinegrafista encontrou-o vivendo nas ruas de Manhattan, então com 80 anos de idade, sustentando-se por meio da venda de obras de arte. Hattendorf interessou-se pelo passado dele, caracterizado por intensos sofrimentos, e passou a registrá-los de forma cinematográfica. Em última instância, as políticas americanas realizadas tanto durante quanto após a guerra explicam os males enfrentados por “Jimmy”. Este artigo utilizará o caso dele (passível de relativa generalização para abarcar outros nipo-americanos afetados pelo conflito) para problematizar as noções de “segurança” envolvidas na participação dos EUA na guerra. Argumentar-se-á que a segurança do país veio às custas de inúmeras violências contínuas contra Mirikitani (e alguns dos demais indivíduos de origem japonesa). Em seguida, defender-se-á a ideia de que a abordagem de “segurança humana”, apesar de suas controvérsias, talvez seja útil para impedir o ressurgimento de situações como essa.

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Em livro de 1992, David Campbell ressalta o caráter não objetivo dos perigos enfrentados pelos Estados. Segundo ele, há riscos em inúmeras circunstâncias, porém apenas alguns deles são, efetivamente, tratados enquanto perigos cujo combate é primordial. Em particular, em temas de “segurança nacional”, os Estados se firmam como os principais definidores daquilo que constituiria uma ameaça. Para que essa definição aconteça, estabelecem-se divisões entre o “nacional” e o ambiente externo – uma identidade pautada na negação, e que precipuamente estigmatiza o “outro”. Em termos de política externa, o “outro” recebe a alcunha de ameaçador e, em sua contenção, o Estado teria importante papel. Dessa forma, para que a relevância estatal persista, é mister que existam constantes itens “securitizados” — o que leva à inferência lógica: em muitos casos, a atemorização não passa de mera construção, que “evangeliza o medo” e garante apoio às identidades frágeis dos Estados.

No início de 1942, em larga medida dotados desse espírito, os EUA promulgaram a Executive Order 9066. A legislação foi concebida como parte da retaliação ao ataque de Pearl Harbor, perpetrado pelo Japão — em termos práticos, ela institucionalizou a desconfiança com os nacionais desse país. Alegava-se que os japoneses, residentes nos EUA, representavam risco à “segurança nacional”, em especial porque poderiam favorecer esforços de espionagem. Com base nisso, possibilitou-se que aproximadamente 120.000 “inimigos” (ou indivíduos supostamente ligados a eles) fossem enviados a zonas de concentração e/ou trabalho forçado. Dentre eles, estavam “Jimmy” e sua irmã — ela, enviada para Idaho; ele, para a Califórnia e para o Texas. Nos anos subsequentes, “Jimmy” foi virtualmente coagido a renunciar à sua cidadania, junto com cerca de 5.000 nipo-americanos, em protesto após se recusar a demonstrar “lealdade” aos EUA. Ao final da Segunda Grande Guerra, embora já livre de punições diretas, ele perdeu boa parte de seus parentes no bombardeio nuclear a Hiroshima. Devido a esses fatores — aprisionamento / perda de cidadania e de familiares —, ele sofreu com forte intensidade as “temporalidades”2 da guerra.

Conforme exposto por Michael Shapiro (2015), a experiência vivenciada por Mirikitani é crucial para se entender uma série de atrocidades tornadas possíveis pela guerra. De certa forma, os problemas que oficialmente duraram até 1945 persistem a influenciar no cotidiano de várias pessoas — no caso, naquele de “Jimmy”. Suas produções artísticas comumente abordavam o flagelo do conflito, seja por meio de desenhos do campo de concentração de Tule Lake, possibilitados pela dolorosa memória, seja por representações do bombardeio a seus entes em Hiroshima. Uma vez que ele havia perdido sua cidadania americana, junto com ela, se foram incontáveis direitos (em termos de proteção social) que os Estados Unidos poderiam lhe fornecer. No final da década de 1980, quando ele perdeu um emprego que conseguira em Nova Iorque, teve de encarar o desemprego e a moradia nas ruas até que Hattendorf lhe ajudou.

Com isso, pode-se questionar a noção de que o fim de uma “guerra” traria, necessariamente, um período de “paz generalizada” — certamente, para “Jimmy”, isso não aconteceu. Por meio da argumentação de Johan Galtung (1969), a paz pode ser entendida como a “ausência de violência”, e esta, por sua vez, pela diferença entre o potencial das realizações de um indivíduo, e aquelas que, de fato, são efetivadas. No caso de Mirikitani, como artista e cidadão americano, ele teria diante de si fortíssimo potencial de florescimento profissional e pessoal, ainda mais pois vivera “livre” em duas regiões com renomada relação com as artes: a Califórnia e a cidade de Nova Iorque. Todavia, as temporalidades da guerra tiveram impacto fundamental nele, na medida em que, pelo resto de sua vida, minaram as chances de ele “realizar todo o seu potencial”. De fato, ao longo de The Cats of Mirikitani, “Jimmy” explicita completo desinteresse em se associar ao governo americano, temendo novas consequências adversas do trato com a burocracia estatal — a pressão psicológica que emergiu em um passado relativamente distante continuava a influenciá-lo.

Desse modo, ao se adotar a tipologia desenvolvida por Galtung (1969), é possível alegar que Mirikitani foi constante vítima de violência, embora ela fosse predominantemente estrutural. Após sua liberação do “controle por parte do governo”, Mirikitani foi lançado à própria sorte na vida americana — é difícil alegar que uma pessoa (ou facção de pessoas) específica tenha continuado a violentá-lo. Apesar disso, o cenário enfrentado por ele no pós-guerra, implicitamente, mantinha os padrões de exclusão identitária introduzidos anteriormente: o status quo incluía, por exemplo, a falta de cidadania e o descaso com a reintegração social dos japoneses e nipo-americanos. O problema agravou-se com o fato de que esse tipo de violência, em via de regra, permanece às margens das discussões sociais. O próprio Mirikitani, após se fadar ao desemprego, viveu por anos no meio do Washington Square Park e de Soho, em Nova Iorque, e foi cotidianamente ignorado por vários compatriotas que lhe cruzavam — afinal, não se trataria de “apenas” mais um mendigo dentre muitos? Tal como afirma Galtung:

A violência estrutural é silenciosa; ela não se mostra — é essencialmente estática, são as águas calmas. Em uma sociedade estática, a violência pessoal [ou seja, a violência direta] será notada, enquanto que a violência estrutural talvez pareça tão natural quanto o ar que nos cerca. (GALTUNG, 1969, p. 173, tradução minha)

Como se pode perceber, para “Jimmy” (e milhares de outras pessoas em situação semelhante), a Segunda Guerra Mundial e as temporalidades advindas dela tiveram consequências substanciais, e inerentemente difíceis de serem superadas. Em grande parte, elas podem ser compreendidas pela noção de que ocorreu um descompasso entre as políticas voltadas para a segurança do Estado e a segurança dos indivíduos dentro deles (embora nem todos os americanos tenham sido prejudicados tal como Mirikitani). O estabelecimento de campos de concentração, sem dúvida, consistiu em esforço para favorecer o Estado americano e os seres que se adequavam na “identidade” que o próprio governo considerava “nacional”. Os sofrimentos posteriores de boa parte da comunidade nipo-americana, conquanto possam ser “consequências não intencionadas”, perpetuavam uma lógica de segurança que tem efeitos desiguais. Por esse motivo, também se pode alegar a existência de violência latente — uma estrutura social instável, com disparidades e, consequentemente, imensas probabilidades de dificultar as vidas dos nipo-americanos. Em suma: tanto durante quanto após a guerra, não se observou apreço suficiente pela figura do ser humano.

Dessa forma, esse caso pode servir como evidência da necessidade de, em algumas circunstâncias, superar o caráter “estadocêntrico” das deliberações sobre “segurança internacional”. Com tal intuito, a abordagem de “segurança humana” tem o potencial de contribuir para o debate, visto que inova na ênfase explícita em pessoas. Essa perspectiva considera que os Estados, ainda que detenham grande importância no provimento de segurança aos seus respectivos povos, nem sempre são capazes de provê-la eficazmente. Isso se associa intimamente aos dilemas enfrentados por “Jimmy”, o qual era cidadão norte-americano, porém sofreu substancial insegurança desde o início da Segunda Grande Guerra, dentro dos Estados Unidos. A “segurança humana” trabalha com a noção de que é fundamental investir em direitos e oportunidades para os indivíduos — precisamente aquilo que faltou por muito tempo (e continua a faltar) na vida de vários dos nipo-americanos prejudicados nos anos 1940. Em termos específicos para contribuir nesses casos, prevê-se que:

Em muitos aspectos, a segurança humana requer a inclusão dos excluídos. Ela visa a que a maior quantidade possível de pessoas tenha esperança suficiente em seus futuros [...]. Dessa forma, proteger e capacitar as pessoas se refere à criação de oportunidades genuínas para que as pessoas vivam em segurança e dignidade. Quando vista desse ângulo, a segurança humana reforça a segurança estatal, mas não a substitui. (COMISSION ON HUMAN SECURITY, 2003, p. 5, tradução minha, grifo meu)

A importância da proteção e capacitação (empowerment) em alguns cenários torna-se evidente ao se considerar o desfecho de Cats of Mirikitani: após o auxílio cedido por Linda Hattendorf, que o abrigou inclusive em seu próprio apartamento, “Jimmy” foi capaz de descobrir que tinha seu direito a reaver a cidadania americana garantido desde 1959 — junto com ele, uma série de benefícios sociais até então desconhecidos e/ou negligenciados. Além disso, ele recebeu espaço para morar e utilizar seu dom artístico em um dos asilos mantidos com subsídio governamental em Nova Iorque, apresentando suas obras e oferecendo cursos de desenho e pintura japoneses para os demais idosos lá presentes. Ambas as mudanças na vida de Mirikitani se concretizaram após a intervenção de Hattendorf, a qual talvez não fosse necessária caso os EUA tivessem sido mais atentos aos direitos dos indivíduos nipo-americanos dos anos 1940. Assim, pode-se valorizar as contribuições da “segurança humana” principalmente em duas características: o reconhecimento das limitações do Estado, e a relevância de ações voltadas para “o indivíduo”.

Vale a ressalva, contudo, de que o destaque cedido à perspectiva da “segurança humana” no “caso Mirikitani” não a isenta de críticas. Tal como alegado por Roland Paris (2001), esse conceito pode assumir facetas extremamente genéricas, o que talvez represente uma expansão desnecessária (e prejudicial) da ideia de “segurança”. Similarmente ao que alertam vários autores da Escola de Copenhague, a “securitização” de múltiplas temáticas carrega consigo o risco de perpetuar lógicas de excepcionalidade e dominação, ao legitimar certa militarização em torno de concepções de vida “ocidentais”. Por causa disso, caberia à “segurança humana” desenvolver-se teoricamente a ponto de dificultar esse prognóstico desestimulante. Além disso, é mister que a abordagem forneça opções viáveis para a sua implementação em políticas específicas — caso contrário, ela pode fadar-se ao fracasso fora de iniciativas apenas teóricas ou, inclusive, retóricas. Apesar dessas considerações, pode-se alegar que, para Mirikitani e outros nipo-americanos, a capacitação e o respeito aos direitos teriam melhores efeitos do que a mera estratégia “estadocêntrica” fomentada pelos EUA após o ataque a Pearl Harbor. No caso, a “segurança humana” poderia ser usada para contrastar a militarização (já presente devido à guerra), a partir do foco nos indivíduos; e assegurar que o aprisionamento, ao menos daqueles que fossem americanos, jamais ocorresse.

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Percebe-se, portanto, que o “caso Mirikitani” constitui proveitosa ilustração dos problemas da concepção “tradicional” de “segurança”. Como argumentado, essa concepção permite que os Estados efetivem políticas que aumentam a insegurança de parte de suas populações, e que possam resultar em violências estruturais ou latentes, contra indivíduos não alinhados à identidade tida como “nacional”. Como possível solução a esse dilema, sugere-se que a “segurança humana” pode representar uma alteração de paradigmas, em duas características peculiares: a noção de que o Estado, enquanto provedor de segurança, é limitado; e o foco em indivíduos. Ao aplicar pontualmente as contribuições dessa abordagem, dentro do âmbito de cada país, relativo progresso pode ser alcançado. A experiência vivenciada por Mirikitani e alguns de seus compatriotas indica que, nas situações em que os “direitos humanos” já sejam aceitos e reivindicados por certas pessoas, é fundamental garanti-los. Dessa forma, poder-se-á superar a simplista ideia de “segurança nacional”, inerentemente “estadocêntrica”, em prol de uma perspectiva mais holística e que, de fato, inclua toda a “nação”.

Notas

  1. O título do documentário alude ao fato de que a produção artística de Mirikitani frequentemente retratava gatos (cats).
  2. Neste artigo, o conceito adotado de “temporalidade” refere-se aos efeitos da progressão do tempo, quando ocorrida por meio de conexões entre o passado, o presente e o futuro (tornando, por exemplo, um evento passado intimamente ligado ao futuro de certo grupo social).

Referências bibliográficas

Lista não exaustiva