Maioridade penal, armas e drogas: a Lagoa é apenas a ponta do iceberg
O problema com os discursos populistas após o assassinato de Jaime Gold na Lagoa.
Vista aérea da Lagoa Rodrigo de Freitas. (Créditos: “chensiyuan” | Licença)
O falecimento de Jaime Gold, esfaqueado num dos maiores ícones turísticos do Rio, e os demais assaltos com arma branca que assolaram a cidade reacenderam alguns polêmicos debates. Dado que os principais suspeitos do crime (não queremos atribuir culpa antes do julgamento, certo?) são dois menores de idade, é natural que seja amplamente solicitada, pela sociedade, a redução da maioridade penal. Da mesma forma, houve clamor popular suficiente para que os legisladores aprovassem uma possível proibição do “porte de armas brancas” no estado. Há, também, outros pontos sendo abordados nacionalmente: a noção de permitir o armamento da população, e o evidente fracasso da política de “guerra às drogas” (com possível legalização delas), por exemplo — tudo em prol da segurança pública.
Um pouco depois da tragédia, nosso secretário de segurança afirmou categoricamente: “Um lugar como a Lagoa não pode, de maneira alguma, ser alvo desse tipo de atitude”. A declaração dele — compreensível, porém infeliz — serve como exemplo para nos mostrar que nem tudo é tão simples quanto parece. Beltrame errou — nenhum lugar pode, de maneira alguma, ser alvo desse tipo de atitude. Acontece que, em face de tamanho problema, não podemos vituperá-lo tanto assim por seguir um instinto humano. Lá no século XVII, Hobbes (com quem divirjo em outros tópicos, aliás) nos alertava sobre nosso “medo da morte violenta”, a tendência de colocarmos nossa própria segurança acima de tudo. (A Lagoa foi rapidamente inundada de policiais; por que não a Baixada Fluminense, por exemplo?). Atualmente, esse “medo” continua a guiar algumas de nossas ideias e práticas, e os resultados podem ser discutíveis.
Protesto na Lagoa Rodrigo de Freitas, em memória de Jaime Gold. (Créditos: “Fernando Frazão / Agência Brasil” | Licença)
Pelo ponto de vista do poder dissuasivo da lei, deveríamos ter sociedades com maioridades penais cada vez menores, acompanhadas por maiores restrições ao porte de quaisquer armas. Isso gera aquilo que a Psicologia chama de “punição positiva”, algo que reduz a probabilidade de um comportamento (crimes) ao introduzir um fato futuro desagradável (a ida à cadeia). O problema começa quando apontamos algumas das lacunas desse argumento, como ao lembrar do uso de facas para fins “pacíficos”. Além disso, por mais incrível que pareça, o Estatuto da Criança e do Adolescente possui mecanismos para lidar com jovens infratores — a liberdade assistida e a semi-internação, em especial. A eficácia dessas ações, porém, acaba por padecer dos mesmos males do nosso sistema prisional, como o mal emprego dos recursos públicos. De qualquer forma, ainda que nas melhores circunstâncias, essas são meras punições. “Quando a pessoa que fornece a punição abandona a situação, o comportamento indesejável provavelmente reaparecerá”.
Na contramão das propostas que, até certo ponto, baseiam-se no aparato legal já estabelecido pelo Estado (leia-se, em seu poder coercitivo), as sugestões de legalização dos entorpecentes e do armamento popular enfatizam, notadamente, o papel do cidadão enquanto definidor dos rumos societários. Suas sequências argumentativas geralmente assumem as seguintes facetas:
- Permitir a formação de um mercado legítimo de drogas, o que aumentará o poder de os indivíduos controlarem suas próprias vidas, ao mesmo tempo em que minará o comércio ilegal que enriquece traficantes e atrai menores ao crime.
- Reduzir (ou, até mesmo, eliminar ou reverter) a disparidade de força entre “bandidos” e “cidadãos de bem”, proporcionando mais um direito às pessoas e fornecendo um desestímulo bem mais evidente (o “medo da morte violenta”) àqueles que outrora cometeriam delitos.
Esses raciocínios, sem dúvida, fundamentam-se no pensamento libertário — a ideia de que o Estado é falho, e que cabe à sociedade se autorregular com base nas decisões de cada um dos seus membros. Não se enganem — simpatizo fortemente com a defesa da supremacia da liberdade individual. No final das contas, ela é a responsável por definir se vivemos ou não sob um sistema político autoritário. Contudo, pelo bem da discussão, devo fazer algumas ressalvas. Situamo-nos num país onde o respeito à legislação está (muito) aquém do ideal. Parece-me ser ingenuidade acreditar que um Brasil com maior acesso a drogas e armas será necessariamente melhor. Hoje em dia, já temos notícias de menores com maconha e fuzis; no futuro, isso pode se tornar apenas uma das coisas ilegais que ignoramos solenemente. É bom questionar, também, a premissa dos “cidadãos de bem”: será que há adultos tão perfeitos assim, capazes de usufruir de seus novos direitos sem prejudicar outrem?
Os debates coletivos que se fortaleceram após a “onda de facadas” no Rio de Janeiro têm propósito louvável — a consolidação de um ambiente social mais estável. As problemáticas que eles ensejam, todavia, talvez demandem maior reflexão analítica. O “medo” guia considerável parte de nossas escolhas em segurança pública, e acabamos por privilegiar nossas próprias agendas políticas em detrimento das demais. Em um de seus contos, Le Guin descreve a cidade fictícia de Omelas, cuja sociedade ostenta, em esmagadora maioria, plena felicidade e paz, ao custo de uma única criança, que deve permanecer eternamente presa dentro de um porão:
Todos sabem que ela está lá, todas as pessoas de Omelas… Todos acreditam que a própria felicidade, a beleza da cidade, a ternura de suas amizades, a saúde de seus filhos… dependem do sofrimento abominável da criança… Se ela for retirada daquele local horrível e levada para a luz do dia, se for limpa, alimentada e confortada, toda a prosperidade, a beleza e o encanto de Omelas definharão e serão destruídos.
O bem-estar social deve ser meta primordial, tanto dos cidadãos quanto do governo. Independentemente disso, o desafio que nos é posto atualmente consiste em encontrar uma forma de conciliar as diferentes pressões sociais decorrentes da escalada de violência, para que nenhum indivíduo (como as vítimas da criminalidade, os usuários de drogas, ou até mesmo os traficantes e demais delinquentes) sofra perdas que desafiam o escopo do ordenamento jurídico nacional. Imagino que a última coisa de que precisamos na sociedade é de uma pessoa (ou algumas pessoas) para exercer o papel daquela criança de Omelas. Jaime Gold morreu desnecessariamente, para satisfazer o desejo imoral daqueles que não respeitam a primazia da lei. Por que deveríamos causar mais prejuízos desnecessários à coletividade ao tentar evitar outra catástrofe como essa?
“Protesto da ONG Rio de Paz pela morte do médico Jaime Gold, 56 anos, esfaqueado em um assalto na Lagoa” (Créditos: “Fernando Frazão / Agência Brasil” | Licença)