França, Islamismo e Terrorismo
Uma nova perspectiva sobre o tratamento às comunidades muçulmanas na França
Muçulmano na França, após o atentado à Charlie Hebdo, diz: “Não foi em meu nome”. (Créditos: “JEAN-PHILIPPE KSIAZEK/AFP/Getty Images” | Alguns direitos reservados)
Em um artigo publicado para uma conferência da Associação Britânica de Estudos Internacionais (BISA), Richard Jackson (2009) refuta uma série de argumentos que costumam ser empregados para caracterizar o fenômeno do terrorismo. A partir de uma postura crítica, alega-se que os atentados terroristas não atingem apenas alvos civis, não são efetuados exclusivamente contra vítimas aleatórias, nem podem sempre ser considerados como ilegítimos [1]. Com isso, a principal característica desses ataques poderia ser atribuída ao propósito de aterrorizar indivíduos que não foram afetados direta ou fisicamente por eles. Uma ação terrorista, como as realizadas “em nome do Islã” em Paris, é frequentemente concebida de forma a se aproveitar do sensacionalismo midiático, com o intuito de carregar determinada mensagem. Em geral, quando o temor provocado por essa mensagem islâmica se difunde, se favorece a elaboração e o reforço de rígidas práticas em contraterrorismo, as quais colocam em risco a dignidade (em termos de Direitos Humanos) de diversos muçulmanos na França.
Conforme argumentado por Foucault em A Ordem do Discurso, por trás de (supostos) meros discursos, pode-se perceber a existência de diversas relações de poder. Em discursos, não haveria apenas a representação de disputas e dominações, mas também a concretização de um espaço onde se poderia conquistar domínio sobre outrem. Ao longo do tempo, na sociedade francesa, essa característica discursiva tornou-se evidente na forma pela qual a comunidade islâmica local era abordada. Como desenvolvido na obra de Mathieu Rigouste (2007), pode-se constatar que a associação entre “imigrantes muçulmanos” e “terrorismo” foi construída linguisticamente durante anos, após o fim das descolonizações e da Guerra Fria, no século passado. Anteriormente, o establishment de segurança francês atuava contra os opositores nas colônias (em uma relação de adversidade nacional) e contra os soviéticos (em uma inimizade compartilhada com outros Estados). Posteriormente, contudo, a figura do migrante árabe/muçulmano passou a assumir a categoria de “inimigo nacional”, tal como ocorrido em inúmeros outros países. Como dito por Rigouste:
Aparecendo no começo dos anos 1970 como uma ameaça demográfica junto com a emergência do Terceiro Mundo enquanto ator transnacional, depois como uma ameaça econômica à medida que a crise econômica é vista como tal, o migrante originário do mundo árabe torna-se o tipo ideal de uma ameaça geopolítica, religiosa e identitária, a partir da intensificação dos antagonismos internacionais com relação ao Oriente Médio após a revolução de Khomeini no Irã. — (RIGOUSTE, 2007, tradução minha)
Por meio dessa associação entre o terrorismo — ameaça à integridade do Estado e de sua população — e o islamismo, legitimou-se a realização de práticas que violam os direitos dos muçulmanos franceses. Com o respaldo de considerável parte da opinião pública, a qual demonstra preocupações exacerbadas com relação à dimensão da presença muçulmana no território, o governo francês contribuiu — tanto intencional quanto despropositadamente — para a segregação das pessoas inclusas nesse grupo. Em certa medida, estabeleceu-se uma relação hierárquica prática, pautada em um discurso, que possibilitava a efetivação de ações deterministas e/ou essencialistas no cotidiano popular. No relatório The root of humiliation, da Human Rights Watch, por exemplo, um depoimento de um cidadão afirma: “Quando perguntamos porque nos escolheram [para uma inspeção policial]… eles disseram: ‘Um árabe e um negro em uma motocicleta em Paris, isso nos assusta’” (HRW, 2012, tradução minha). A ilogicidade, em termos policiais, de uma política de abordagens como essa pode ser comprovada ao averiguar que, em regra, os terroristas operantes em solo europeu rejeitam as concepções tradicionais e populares do Islã (ROY, 2015). De certa forma, essa política mais contribui para a tensão social do que para a segurança propriamente dita.
Frequentemente, na tentativa de se eximir de responsabilidade por qualquer problemática com relação à comunidade islamita, o governo francês alega favorecer, em vez de prejudicar, a diversidade étnico-religiosa no país. Argumenta-se que o Estado reconhece as divergências existentes em sua população, e que, consequentemente, realiza medidas voltadas para a boa convivência entre os cidadãos de cada cultura. Nos termos do antigo presidente François Mitterrand, haveria a defesa de um “direito à diferença”. Como desenvolvido pelo professor Kenan Malik (2015), contudo, o reconhecimento cultural feito pelo Estado francês adota uma postura equivocada com relação às comunidades muçulmanas, a qual é insuficiente para compensar o discurso de atribuição do terrorismo ao Islã. Em vez de considerar as especificidades e individualidades delas, tratam-nas como um único bloco monolítico — indivisível, inseparável e ameaçador. Por meio de procedimentos de “exclusão de discursos”, tal como teorizado por Foucault, as narrativas genuinamente islâmicas são silenciadas na política tradicional francesa.
Quantidade de imigrantes residentes na França, por país de origem — dados de 2006. A diversidade populacional francesa tem provocado dilemas culturais no país. (Créditos: “Kransky / INED” | Licença)
Esse processo, sem dúvida, relaciona-se fortemente com o eurocentrismo que perdura nos sistemas políticos característicos da “modernidade”. De certo modo, a vida “moderna” assume, muitas vezes, facetas europeias, o que contribui para o desprezo e para a negligência com relação a outros modos de viver (como aqueles defendidos pelos grupos islâmicos não fundamentalistas). Assim, até mesmo políticas francesas supostamente “neutras” religiosamente — como a lei de proibição do uso público do véu e do quipá — favoreceriam os “verdadeiros franceses” (os quais, em maioria, são cristãos). Em casos como esse, o domínio francês com relação às religiões minoritárias no país poderia acontecer não somente por uma política de exclusão sistemática dos adeptos a elas (como argumentado por alguns muçulmanos após a promulgação da lei), mas também como consequência despropositada de uma iniciativa baseada em conceitos intrínsecos à realidade francesa (notadamente, o laicismo). Uma base teórica para analisar essa problemática advém do trabalho de Dipesh Chakrabarty, que afirma:
Conceitos como cidadania, Estado, esfera pública, direitos humanos, igualdade perante a lei, indivíduo, distinção entre público e privado, sujeitos, democracia, soberania popular, justiça social, e racionalidade científica, dentre outros, carregam o fardo do pensamento e da história europeia. Não se pode pensar em modernidade política sem esses conceitos e outros relacionados a eles, os quais encontraram seu ápice ao longo do Iluminismo europeu e do século XIX. — (CHAKRABARTY, 2000, tradução minha)
Para o teórico, há a possibilidade de que a propagação do pensamento “europeu” gere estruturas duradouras de domínio e subalternação, à medida que ele é replicado em outras culturas. Com isso, teria importância uma iniciativa de “provincializar a Europa” — isto é, aplicar a circunstâncias locais, não diretamente ligadas ao ideário europeu, os conceitos que inicialmente tiveram influência dele, já que não se deve rechaçar completamente o seu legado. Embora o trabalho de Chakrabarty tenha como caso-base a Índia, é possível expandir seu escopo, de modo a utilizá-lo para compreender a relação entre o Islã e a sociedade francesa. Enquanto o Estado francês, por meio de uma política “assimilacionista”, pretende negar o papel público da religião, ignora-se o caráter “pró-França” de uma postura como essa. Dessa forma, tal como defendido por Chakrabarty, talvez valeria o esforço de “relativizar” levemente o laicismo francês, com o intuito de superar a dominação estrutural vigente. Essa abordagem, contudo, mostra-se cada vez mais improvável de acontecer no país.
Em via de regra, os discursos e práticas xenofóbicas que proliferam na França há tempo podem ser compreendidos como expressões do “Orientalismo”, nos termos de Edward Said. À luz desse posicionamento, o “Ocidente” (no caso, a sociedade francesa) produziria determinada visão sobre o “Oriente” (no caso, os islamitas no país). Essa visão teria como característica algum teor de “verdade” sobre a cultura do “outro” — de certa maneira, um conhecimento que, por ser amplamente aceito, fortalece relações de poder e resiste a mudanças. Na experiência francesa, isso se manifesta na imagem de árabes / muçulmanos como “potenciais terroristas / extremistas”, ou simplesmente considerados ultrapassados por não conseguirem aderir ao secularismo moderno do “assimilacionismo”. Dada a persistência dos atentados terroristas contra a França, bem como a rejeição do islamismo tradicional em se sujeitar a restrições jurídico-legais em termos de fé, essa imagem “oriental” parece continuar a prevalecer no futuro próximo.
Como resultado disso, a exclusão que se impõe às comunidades muçulmanas na França ultrapassa, cada vez mais, o limite do simples preconceito em um cotidiano ainda “normal” (isto é, um que possibilite a vida delas no país). Conforme ressaltado por George Packer (2015), a segregação aos muçulmanos assume novos níveis a cada instante. Isolados espacialmente em “periferias” ou “banlieues”, coagidos pelas forças de segurança, impossibilitados de competir adequadamente no mercado de trabalho, e constrangidos na tentativa de manter suas próprias ideologias e culturas religiosas, os muçulmanos franceses, de fato, vivenciam os dilemas de uma dominação “ocidental”. Não surpreende que muitos deles fiquem insatisfeitos com suas vidas, e que alguns escolham, por causa disso, aderir ao próprio terrorismo — o que reforçaria, ainda mais, o sentimento “islamofóbico” na França, formando um círculo vicioso.
Percebe-se, portanto, que o fenômeno do terrorismo, associado ao estereótipo típico de um “muçulmano” no final do século XX, persiste a provocar problemas culturais no território francês. Por um lado, essa associação permite, de imediato, a concretização de iniciativas deterministas, as quais deveriam prezar pela segurança interna da França, porém não o conseguem fazer de forma adequada, como evidenciado pelos ataques a Paris neste ano. Por outro, graças a aspectos discursivo-cognitivos, a forma com que essa segurança é buscada no país fomenta um ideário popular que torna virtualmente impossível a devida integração dos muçulmanos à sociedade francesa, sem prejuízo à religião deles. O “islamita”, em sua acepção mais generalista possível, é tratado como ultrapassado, pois não faz aderiu apropriadamente à modernidade, como subalterno, pois deve se submeter às normas da vida francesa, e permanece à margem da sociedade, já que o estigma que foi criado sobre ele é constantemente reforçado. Em um cenário como esse, parecem ser pequenas as chances de plena garantia dos Direitos Humanos dos muçulmanos na França — de certa forma, um problema que se expressa em boa parte do “Ocidente”.
Manifestação de solidariedade com a revista Charlie Hebdo, em Bruxelas, em 2015. (Créditos: Valentina Calà | Licença)
Notas
- [1] Uma das possibilidades abordadas por Jackson diz respeito ao uso legítimo da violência, por parte de “terroristas”, contra um regime estatal opressivo.
- A versão original deste artigo foi desenvolvida para a disciplina Fundamentos da Teoria de Relações Internacionais II, ministrada na PUC-Rio por Victor Coutinho Lage, no segundo semestre acadêmico de 2015.
Referências bibliográficas
- BITTENCOURT et al. Xenofobia na França: uma nova perspectiva. Acesso em: 02 dez. 2015.
- CHAKRABARTY, Dipesh. Provincializing Europe: Postcolonial Thought and Historical Difference. Princeton: Princeton University Press, 2000.
- FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. 5 ed. São Paulo: Loyola, 1999.
- HRW. The root of humiliation: Abusive Identity Checks in France. Acesso em: 5 jun. 2014.
- JACKSON, Richard. Critical Terrorism Studies: An explanation, a defence and a way forward. Artigo apresentado na 3ª Conferência Annual Internacional CICA-SRT, 2009.
- MALIK, Kenan. The Failure of Multiculturalism. Foreign Affairs, mar./abr. 2015. Acesso em: 02 dez. 2015.
- PACKER, George. The other France: Are the suburbs of Paris incubators of terrorism? The New Yorker, 31 ago. 2015. Acesso em: 02 dez. 2015.
- RIGOUSTE, Mathieu. L’ennemi intérieur, de la guerre coloniale au controle sécuritaire. Cultures & Conflicts, v. 67, p. 157–174, outono 2007.
- ROY, Olivier. What is the driving force behing jihadi terrorism? A scientific perspective on the causes/circumstances of joining the scene. Acesso em: 02 dez. 2015.
- SAID, Edward. Orientalism. Londres: Penguin Group, 2003.