A falaciosa urgência do “urgente”

As mídias modernas impõem um fluxo de informação ainda maior sobre nós.

20/06/2017 - Thiago Bittencourt

Uma marcação de notícia “urgente”, do jornal Folha de São Paulo na Internet, frequentemente usada para matérias nem tão urgentes assim. (Créditos: Reprodução Folha de São Paulo)

Aos poucos, a gente se acostuma às consequências de uma Internet cada vez mais competitiva. No campo das mídias jornalísticas, vemos a quebra da hegemonia dos principais conglomerados globais — agora desafiados por qualquer indivíduo com dinheiro e conhecimento suficiente pra montar sua agência de notícias. Não precisa nem ser fake news, daquele tipo de notícia que só se propaga pelas mentiras absurdas que conta. Nos EUA, montaram inclusive uma gigante corporação do ramo informacional só pra viralizar nas redes sociais: a Buzzfeed.

Os sintomas clássicos do modelo Buzzfeed de negócios já são bem conhecidos — o apelo à banalidade, os artigos polarizadores da opinião pública, a ênfase em conteúdos virais... Tudo isso, de uma forma ou de outra, arrumou jeito de entrar nos veículos ditos “tradicionais”. Talvez fosse a única estratégia que restava para essas mídias, menos como manutenção da velha ordem das coisas, mais como tentativa de garantir o sustento de empresas duradouras que agora enfrentam um futuro incerto. Uma inovação dos veículos tradicionais, entretanto, é a transposição para o mundo virtual das breaking news — o furo jornalístico, antes alardeado num periódico do dia seguinte, depois na TV em vermelho-CNN, e agora assumindo formas bem mais radicais e preocupantes.

Num artigo para o Techcrunch, Anish Acharya relata como que as conhecidas “notificações” — aquelas que toda hora surgem nos nossos apetrechos — serão a nova plataforma de interação com consumidores de mídia. Acharya fez a profecia em 2015, mas ela já se provou certíssima. Existe melhor maneira de conquistar a atenção imediata de um ser humano conectado, mesmo que por poucos segundos? Pelo visto, o sistema de expectativas que criamos em torno das notificações é forte demais, e veio para ficar. Tem um quê de mágica em ser avisado em milissegundos sobre a chegada de uma mensagem transcontinental. O problema é que, obviamente, esse mesmo sistema pode ser facilmente abusado para outros propósitos.

Em outro artigo extremamente valioso, na Wired, Mat Honan conta a história de “Circa News”, um aplicativo que pretendia “revolucionar” o jornalismo. (Ideal revolucionário, por sinal, é o que não falta na indústria tecnológica). O programa coletava o fluxo de notícias de todo o mundo, e depois enviava fragmentos de informação a cada instante que um fato novo surgisse. Se os “fatos” seriam comprovados? Não se sabia ao certo. Se as informações passadas mereciam contexto? Não importava. O fundamental era manter a corrente de dados sendo transmitidos para os usuários, com apenas uma reflexão significativa — quando seria válido interromper a vida de alguém para compartilhar notícia? Os criadores do “Circa News” não conseguiram lidar com essa preocupação, e, no final das contas, acabaram vendo o aplicativo fracassar.

Nem todos, é claro, compartilham dessa nobre delicadeza. Desafio você a baixar os apps da rede americana CNN e da britânica BBC, e deixá-los em suas respectivas configurações padrão. No final de um dia, muito provavelmente sua tela de notificações terá sido abarrotada por uns 50 botões esperando um clique. Talvez pareça que não, mas isso representa muita coisa, especialmente ao se considerar que a maioria dos indivíduos sequer deseja ler tudo que lhe é passado. De qualquer forma, as manchetes continuam chegando até nós, ampliando a sensação de que tudo é indispensável (e provocando o FOMO, fear of missing out, o temor por perder alguma informação).

O exemplo mais evidente disso talvez se encontre, aliás, fora do ramo das interrupções à vida humana. Não é à toa que boa parte dos acontecimentos contemporâneos são narrados virtualmente com as imagens e descrições de “URGENTE”. Esse adjetivo, que deveria ser usado raramente, aparece em tudo: de acidentes de trânsito a tweets do Donald Trump; de prisões da Lava Jato a vídeos do seu youtuber favorito. É a faceta mais explícita de um modelo de consumo de mídia em forte ascensão, mas que, em última instância, leva à sua própria derrocada. Surge uma questão curiosa: se tudo é importante, o que efetivamente merece atenção? Até hoje, ninguém parece ter encontrado resposta eficaz. Mesmo para os maiores entusiastas da descentralização e proliferação de informações, em algum momento deve aparecer certa dificuldade em lidar com o fluxo de coisas que persiste a cada dia.

Queiramos ou não, por enquanto nossos cotidianos são bem limitados, e simplesmente não há como absorver tudo. Uma evidência ilustrativa é o número de livros já publicados pela humanidade — provavelmente incapazes de serem lidos por uma única pessoa no decorrer de toda a vida. Enquanto esse cenário persistir, cabe a nós refletir sobre o modo com que nos acostumamos a captar os dados do mundo — e, pior ainda, as inúmeras consequências que esse modelo tem trazido para várias cabeças deste século. Isso, entretanto, fica para além dos objetivos dessa curta epifania.