Crash: a interseção entre a ética e o cinema
Dissertação sobre o filme “Crash: No Limite”, para a disciplina de Ética Cristã, na PUC-Rio
Cartaz de propaganda do filme Crash: No Limite. (Créditos: Lions Gate Films | Reprodução do material de divulgação do filme)
Em 2004, no filme Crash – No Limite, o diretor Paul Haggis promove discussão sobre os empecilhos da integração social nos EUA contemporâneo, tendo como base algumas relações estereotipadas presentes na cidade de Los Angeles. Especialmente hoje em dia, em tempos nos quais as tensões raciais, de classe econômica e de gênero se mostram cruciais para compreender o noticiário norte-americano, o debate fomentado por Haggis parece ser oportuno. Este artigo buscará analisar o filme Crash, abordando especificamente sua conexão com os debates no campo da Ética. Para tal, realizar-se-á uma argumentação dividida em três passos: inicialmente, questionar-se-á o papel da Ética no mundo moderno, com ênfase no caráter disciplinador dela, em termos de “dignidade humana”. Em seguida, propor-se-á uma forma de interpretar Crash não como uma obra isolada, porém como expressão de uma visão de mundo que pode ser expandida para além dos confins da realidade cinematográfica. Por fim, com base no exposto, argumentar-se-á que o ideário propiciado pela discussão sobre Crash torna-se cada vez mais relevante, em um mundo complexo e interligado pelos processos de globalização.
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Em suas acepções atuais, a Ética pode ser compreendida como um vocábulo associado predominantemente à normatividade: tal expressão, muitas vezes, imputa senso de dever àqueles que a utilizam para algo. Em condições ideais, caberia a cada indivíduo buscar agir de forma “ética”, como uma obrigação que lhe é imposta pelo meio em que vive. Nesse sentido, a Ética se aproxima, tal como teorizado pelo sociólogo francês Émile Durkheim, dos chamados “fatos sociais” — normas presentes na sociedade que independem da vontade individual de seus membros, aplicam-se a todos, e coagem aqueles que as desrespeitam. Haveria, portanto, uma dicotomia entre o agir eticamente e o agir antieticamente. O primeiro, pelo poder discursivo da expressão, deveria ser louvado; o segundo, condenado ao máximo. Tal como um “fato social”, a ética provê tanto normas, advindas do costume, quanto o prospecto de punição a seus detratores. Ambas essas características, a meu ver, expressam um mesmo movimento: o interesse na gradual obtenção de “corpos disciplinados” (nos termos de Foucault). Em outras palavras: estabelece-se uma forma “ética” de se agir, e retalia-se caso ela não prevaleça.
Sem dúvida, esse tipo de organização social está em vigor, ao menos, desde a fundação da instituição do Estado moderno, com o fim da Idade Média. Cada Estado ordena seu respectivo território com base nos princípios éticos de suas legislações, e, graças ao monopólio do uso da força, é teoricamente capaz de policiar quaisquer desavenças à organização da sociedade. Hoje em dia, dada a primazia da concepção de ética defendida por Immanuel Kant — o respeito à dignidade humana —, os Estados, em geral, têm buscado oferecer o “respeito à figura do ser humano”, ao valorizar ostensivamente essa visão ética. Contudo, uma vez que o ramo da Ética pressupõe a contínua proliferação de perspectivas diferentes, advindas de dinâmicas sociais, o movimento disciplinador encontra um empecilho: a coerência que se espera de um indivíduo “ético” é essencialmente interna — para julgar seus atos, seria adequado considerar apenas as considerações do tipo de Ética adotado por ele. Caso extrapolássemos a análise e considerássemos “outras éticas”, haveria inclusive o risco de entrarmos em contradição.
O filme Crash se apresenta como proveitoso cenário analítico justamente por retratar o empecilho da disciplina proposta pela Ética levado às últimas instâncias: o conflito entre personagens que, por estarem inseridos em dinâmicas sociais diferentes, apresentam diferentes formas de agir eticamente, porém influenciam uns aos outros. Seja no policial novato que flexibiliza as normas da lei para promover um “bem” a um homem negro anteriormente humilhado; seja pelo comerciante persa que acredita poder ter arma em punho e “fazer justiça com as próprias mãos”; seja no bandido que assalta seu compatriota para ascender economicamente na vida — todas essas cenas ilustram seres agindo da forma que consideram adequada, porém, simultaneamente, sendo cúmplices em ações que, no fim das contas, minam a própria coesão entre eles. Consideremos o “Imperativo Categórico” de Kant: caso os atos isolados de cada personagem se tornassem o padrão, muito provavelmente o convívio entre os habitantes de Los Angeles fracassaria, visto que inexiste uma “norma universal” para guiá-los.
Crash trabalha com esse argumento por meio da interligação das inúmeras narrativas presentes no enredo. Ao longo do filme, pode-se perceber que, pouco a pouco, a individualidade de cada pessoa em sua adoção a certa “perspectiva ética” torna-se um problema bem maior do que inicialmente imaginado. Consideremos o exemplo das seguintes cenas, com alguns dos personagens: a indignação do comerciante persa com o trabalho do chaveiro deixa a porta de sua loja estragada; com essa vulnerabilidade, possibilita-se um ataque xenófobo ao local, o que cede razão para que o próprio comerciante adote o ódio contra o chaveiro. Dessa forma, pouco a pouco, forma-se um círculo vicioso: à medida que certas “éticas” entram em discórdia, permite-se uma possibilidade de surgimento de novos problemas sociais — embora essa “espiral de conflito” talvez não tenha sido a intenção inicial de cada personagem. A mensagem propiciada pelo enredo é notória — não há espaço para a “dignidade humana” em uma sociedade que apresente tamanho nível de discrepância ética entre seus membros.
De certo modo, nas cenas do filme, fica evidente que esse argumento foi desenvolvido para gerar incômodo. O diretor Paul Haggis, conseguiu demonstrar de forma clara as perversidades de uma sociedade pouco coesa, na qual a Ética assume facetas dispersas e em constante incremento de complexidade. Em um cenário desse gênero, a ausência do ideal de “dignidade humana” serve brilhantemente para instigar o espectador. As cenas de violência gratuita, falta de amor ao próximo e reforço de preconceitos infundados são fortes, porém se firmam como a marca de um filme que excede o reino do cinematográfico, e visa a difundir um novo olhar sobre a realidade que cerca tanto Los Angeles quanto outras cidades pelo mundo. O mal não está meramente num roteiro de arte; ele está na vida. O ramo da Ética não enfrenta desafios meramente na ficção; enfrenta-os na vida. Em minha visão, o principal legado trazido por Crash é fazer-nos refletir sobre o status quo do mundo contemporâneo, e a banalização de um processo de “desumanização da humanidade” que se expressa em inúmeras vertentes. Especialmente hoje em dia, em um mundo cada vez mais integrado, essa reflexão assume considerável importância para nosso futuro.
O fenômeno da “globalização” trabalha com a noção da aproximação entre povos distintos, o que, por vezes, reitera certo idealismo e esperança humanitária. Contudo, ao analisar tal ocorrência por um viés crítico, não é preciso muito esforço para averiguar os obstáculos que o campo da Ética deverá encarar: mais perspectivas em conflito e, como bem ilustrado pelo filme Crash, maiores chances de deterioração na “dignidade humana” enquanto princípio norteador da ação humana na Terra. Para lidar com essa problemática, é mister que se estimule o debate com relação ao papel da Ética atualmente. Com isso, pode-se esclarecer o impacto que o caráter normativo dela exerce nas sociedades, e as formas de flexibilizar os ditames do costume, quando se tornarem obsoletos — isto é, incompatíveis com as expectativas mais atualizadas de cada sociedade e seus respectivos indivíduos. Um exemplo dessa prática pode ser observado ao analisar a gradual decadência de inúmeras estruturas de racismo estrutural (como a escravidão e o Apartheid) com a redefinição da ética que, em um passado não tão distante, as justificavam. Com esse debate profundo, creio que certo progresso pode, no final das contas, ser alcançado.
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Percebe-se, portanto, que Crash, de fato, excede os limites de uma simples trama ficcional, e oferece proveitosa contribuição para o estudo da Ética em tempos modernos. Embora seja concebido como obra cinematográfica, pode igualmente ser analisado em termos sociológicos, visto que, como argumentado, engaja na divulgação de uma mensagem bem específica sobre o “conflito de éticas” na contemporaneidade. Esse ideário é transmitido de forma bem explícita, por meio da retratação de inúmeras violências e “desvios de conduta” por parte dos personagens, de forma a instigar no espectador o interesse por uma sociedade mais coesa, solidária, e baseada na “dignidade humana”. Em particular, recentemente, essa mensagem carrega importância peculiar, graças à maior integração social global. Como um todo, a partir de meu ponto de vista, o filme obtém sucesso na conscientização acerca dos dilemas da Ética. Isso não significa alegar que, por si só, apresenta uma panaceia para os problemas mundiais. Todavia, de qualquer modo, Crash pode ser analisado como, pelo menos, um primeiro passo para o reconhecimento da necessidade em se pensar sobre Ética — não somente como simples atividade intelectual, mas também como reflexão cotidiana, enraizada no espírito dos seres humanos, como um todo.