Análise: discurso de Dilma Rousseff na ONU
Dilma Rousseff discursando para a comunidade international durante a 68ª Assembleia Geral da ONU. (Créditos: The Guardian / Spencer Platt / Getty Images)
Rousseff e sua equipe devem agradecer pelo fato de que o discurso do Brasil é tradicionalmente o primeiro a acontecer. Em vez de discursar para uma multidão de chefes de Estado e diplomatas enquanto eles estão entediados, ela pode argumentar de maneira mais entusiástica. Dentre os argumentos dela, há uma breve referência ao ataque terrorista no Quênia, o esperado repúdio às atividades ilegais de espionagem cometidas pela NSA e um apelo para a solução diplomática da crise síria. Dada a importância de inúmeros assuntos debatidos por Dilma, é essencial reconhecer como as palavras dela são suficientes para ilustrar os interesses brasileiros a curto prazo. Este artigo irá destacar as principais partes do discurso, assim como comentar as intenções delas.
Permitam-me uma primeira palavra para expressar minha satisfação em ver um ilustre representante de Antígua e Barbuda – país que integra o Caribe tão querido no Brasil e em nossa região – à frente dos trabalhos desta Sessão da Assembleia-Geral. Conte, Excelência, com o apoio permanente de meu Governo.
Permitam-me também, já no início da minha intervenção, expressar o repúdio do governo e do povo brasileiro ao atentado terrorista ocorrido em Nairóbi. Expresso as nossas condolências e a nossa solidariedade às famílias das vítimas, ao povo e ao governo do Quênia.
O terrorismo, onde quer que ocorra e venha de onde vier, merecerá sempre nossa condenação inequívoca e nossa firme determinação em combatê-lo. Jamais transigiremos com a barbárie.
A presidente começa por meio de uma saudação a Jonh Ashe, um representante do Caribe que foi responsável por comandar a Assembleia Geral naquele dia. Mais que uma demonstração de respeito, isso também indica que estamos comprometidos com a a manutenção de relações pacíficas com nossos vizinhos. Além disso, quando o ataque terrorista em Nairóbi é mencionado, a referência a ele serve para introduzir a negação de que apoiamos atividades terroristas. Esse foi um modo apropriado de dizer: nossa política é reprimir quaisquer atos que envolvam o sofrimento ou a morte de pessoas inocentes. De fato, uma crítica sutil deve ser percebida nas palavras de Rousseff, afinal, há muitos modos de prejudicar civis – diversos deles são inclusive praticados por alguns Estados.
Quero trazer à consideração das delegações uma questão a qual atribuo a maior relevância e gravidade.Recentes revelações sobre as atividades de uma rede global de espionagem eletrônica provocaram indignação e repúdio em amplos setores da opinião pública mundial.
No Brasil, a situação foi ainda mais grave, pois aparecemos como alvo dessa intrusão. Dados pessoais de cidadãos foram indiscriminadamente objeto de interceptação. Informações empresariais – muitas vezes, de alto valor econômico e mesmo estratégico – estiveram na mira da espionagem. Também representações diplomáticas brasileiras, entre elas a Missão Permanente junto às Nações Unidas e a própria Presidência da República tiveram suas comunicações interceptadas.
Não há melhor assunto para iniciar o debate na Assembleia Geral que a indignação relativa ao desrespeitoso programa de espionagem americano – questão que nem foi discutida por Barack Obama. Esse ato abusivo foi caracterizado como um problema de “maior relevância e gravidade” quando, na verdade, é o maior escândalo de espionagem desde o fim da Guerra Fria. Não somente uma potência global tirou vantagem de sua tecnologia para explorar segredos comerciais (notavelmente, informação sobre a exploração de petróleo), como também ela se voltou contra um aliado na América do Sul. Dilma espera um pedido de desculpas do governo estadunidense, embora esse cenário provavelmente não contribua para atenuar as tensões entre ambas as nações.
Como tantos outros latino-americanos, lutei contra o arbítrio e a censura e não posso deixar de defender de modo intransigente o direito à privacidade dos indivíduos e a soberania de meu país. Sem ele – direito à privacidade – não há verdadeira liberdade de expressão e opinião e, portanto, não há efetiva democracia. Sem respeito à soberania, não há base para o relacionamento entre as nações.
Nosso serviço diplomático deve ser glorificado por sua genial tentativa de relacionar a espionagem da NSA a duas situações diferentes: as experiências pessoais de Rousseff no combate à ditadura e os ideais americanos sobre a democracia. O Itamaraty foi capaz de responder ao governo de Obama por meio das contradições entre uma das políticas internacionais mais adotadas pelos EUA e as próprias ações deles em relação aos outros países. Ademais, quando a presidente evoca seus pensamentos individuais sobre o problema, ela incorpora um tom de voz humano a um argumento já coeso logicamente. Dessa forma, ela foi capaz de cativar seu público, ao mesmo tempo que apelava para a consciência dele.
Charge retratando o discurso de Dilma na ONU. | Créditos: Jean Galvão
A ONU deve desempenhar um papel de liderança no esforço de regular o comportamento dos Estados frente a essas tecnologias e a importância da internet, dessa rede social, para construção da democracia no mundo. Por essa razão, o Brasil apresentará propostas para o estabelecimento de um marco civil multilateral para a governança e uso da internet e de medidas que garantam uma efetiva proteção dos dados que por ela trafegam.
Durante essa parte do discurso, Dilma simplesmente enunciou o óbvio. A Internet é controlada por uma série de empresas que formam um oligopólio. Adicionalmente, como essas corporações estabelecem-se em apenas alguns países, é mais difícil controlar a rede em uma escala global. A criação de um organismo responsável por governar o mundo virtual aparenta ser uma opção viável, pois isso significaria reduzir as disparidades entre as nações de forma mais ampla. É importante perceber que essa proposta não foi inventada pelo Brasil – ela já existia, porém tinha sido rejeitada.
O grande passo que demos no Rio de Janeiro foi colocar a pobreza no centro da agenda do desenvolvimento sustentável. A pobreza, senhor presidente, não é um problema exclusivo dos países em desenvolvimento, e a proteção ambiental não é uma meta apenas para quando a pobreza estiver superada. — [Rio+20 – conferência ambiental que ocorreu no Rio de Janeiro em 2012]
Seguimos, senhor presidente, apoiando a reforma do Fundo Monetário Internacional. A governança do fundo deve refletir o peso dos países emergentes e em desenvolvimento na economia mundial. A demora nessa adaptação reduz sua legitimidade e sua eficácia.
Impõe evitar a derrota coletiva que representaria chegar a 2015 sem um Conselho de Segurança capaz de exercer plenamente suas responsabilidades no mundo de hoje. É preocupante a limitada representação do Conselho de Segurança da ONU, face os novos desafios do século XXI. Exemplos disso são a grande dificuldade de oferecer solução para o conflito sírio e a paralisia no tratamento da questão israelo-palestina.
Em importantes temas, a recorrente polarização entre os membros permanentes gera imobilismo perigoso. Urge dotar o Conselho de vozes ao mesmo tempo independentes e construtivas. Somente a ampliação do número de membros permanentes e não permanentes, e a inclusão de países em desenvolvimento em ambas as categorias, permitirá sanar o atual déficit de representatividade e legitimidade do Conselho.
Dilma Rousseff está preparada para reafirmar as intenções brasileiras de ter papel decisivo no estabelecimento de uma nova ordem global. Ainda que ela não mencione diretamente o nome de nosso país, o discurso dela ostenta uma crítica: ao poder exagerado das nações desenvolvidas no FMI; à ineficácia que tem afetado o Conselho de Segurança da ONU em suas últimas reuniões; e à falta de uma agência internacional que represente os países desenvolvidos. Kofi Annan, durante seu mandato como secretário-geral das Nações Unidas, tentou (e não conseguiu) conduzir uma reforma das instituições que a compõem. Desde então, essa ideia foi esquecida, embora haja Estados que defendem esse projeto.
[falando sobre a possibilidade de um ataque militar na Síria] Em qualquer hipótese, repudiamos intervenções unilaterais ao arrepio do Direito Internacional, sem autorização do Conselho de Segurança. Isto só agravaria a instabilidade política da região e aumentaria o sofrimento humano.
Rousseff termina o discurso com uma proposta para uma solução pacífica para o caos na Síria. Essa postura do Brasil é esperada, pois ele tem uma duradoura tradição de tentar resolver problemas globais por meio de vias diplomáticas. Adicionalmente, seguindo o que o ex-presidente Lula fez quando foi para outra Assembleia Geral, Dilma defendeu o direito de os palestinos terem seu próprio Estado. No entanto, como existiam outros assuntos a serem debatidos, a questão dos conflitos árabe-israelenses foi deixada em segundo plano.
Em suma, o discurso da presidente sintetizou quase todos os temas que têm prioridade em nossa política externa. Sem dúvida, Dilma não é uma especialista em diplomacia, então as palavras dela foram certamente preparadas por outras pessoas. Isso não significa que ela não tem méritos pelas conquistas em Nova Iorque. Na verdade, caso exista alguma mulher no Brasil que está pronta para encarar os representantes de mais de 150 nações, ela é a segunda mulher mais poderosa do mundo, de acordo com a Forbes.