Adam Smith em Pequim
Uma visão sobre o crescimento econômico da China
Centro de Pequim, a gigante capital chinesa. (Créditos: Kentaro Iemoto | Licença)
Ao longo do século XX, uma importante série de questões globais desenvolvia-se. No início do século, a Europa — logo acompanhada pelos Estados Unidos (EUA) — apresentava predominância no plano político-econômico global. Com primazia militar e um conjunto de economias pujantes, o “Ocidente” tinha maior influência no Sistema Internacional. À medida que o século se encerrava, contudo, podia-se perceber o surgimento de um novo paradigma. Aos poucos, o Leste asiático, capitaneado pela China, consolidava sua posição enquanto região de destaque no mundo. Para compreender o status da economia política global contemporânea, é mister que se aborde o processo de ascensão chino-asiático. Este artigo procurará fazê-lo com base no trabalho inovador de Giovanni Arrighi, economista e sociólogo italiano — em especial, por meio das obras O Longo Século XX e Adam Smith em Pequim.
Em O Longo Século XX, publicado em 1994, o autor baseia-se no legado propiciado pela discussão teórica sobre “estabilidades hegemônicas” para desenvolver o conceito próprio de “ciclos sistêmicos de acumulação” de capital. Arrighi reconhece que, a cada período histórico, determinado ator teria preponderância com relação aos demais, o que o colocaria em posição essencial para o funcionamento do Sistema Internacional. Precedido por Gênova, pela Holanda e pela Inglaterra, os EUA conquistaram a hegemonia no século passado, e a mantêm até hoje, na defesa de uma economia internacional capitalista e liberal. Em Adam Smith em Pequim, devido à hegemonia americana, associada à Europa, Arrighi desenvolve a ideia de Ken Pomeranz e Andreas Gunder Frank de que, ao contrário do previsto pelo Manifesto Comunista, ocorreu o estabelecimento de uma “grande divergência” econômica entre os mundos “ocidental” e “não ocidental”. Com isso, haveria o contínuo desenvolvimento do primeiro, às custas do segundo — naquilo que Gunder Frank alcunhara de “desenvolvimento do subdesenvolvimento”.
Em meados do século XX, contudo, Arrighi crê que essa “grande divergência” começa lentamente a ser reduzida. Entre as décadas de 1960 e 1970, os EUA sofriam com as consequências da Guerra do Vietnã — que representou um imenso fracasso em termos de poderio militar — e, um pouco depois, com as Crises do Petróleo — por sua vez, um fracasso econômico. Simultaneamente, apesar de um breve hiato ao longo da década de 1980, se observava um crescente fluxo de capitais, advindos do “Primeiro Mundo”, destinados ao Sul global e ao Leste asiático. Em geral, esse fenômeno ficou marcado nos chamados “Tigres Asiáticos”, os quais seriam “vassalos” dos EUA ou, apenas, pequenas cidades-estados, com pouco potencial de desenvolvimento de uma hegemonia. Quando o fenômeno passou a se expressar na China, contudo, as circunstâncias foram completamente diferentes.
Para Arrighi, esses acontecimentos das últimas décadas foram responsáveis por provocar uma “crise sinalizadora” da hegemonia americana, com a separação entre poder econômico e poder militar, o que possibilitou a ascensão chinesa rumo à preponderância no sistema. O teórico italiano acredita que a China sempre houvera destaque internacional, entretanto, graças à “grande divergência”, ela havia sido prejudicada por certo tempo. Desse modo, em vez de se observar a emergência dela, ocorreria apenas um ressurgimento. Nas palavras de Arrighi, que cita Gilbert Rozman:
Falamos em ressurgimento porque — nas palavras de Gilbert Rozman — “o Leste asiático é a grandiosa região do passado, tendo estado na vanguarda do desenvolvimento mundial por, pelo menos, dois mil anos, até o sexto, sétimo, ou, até mesmo, oitavo século, depois do qual ela sofreu um eclipse relativamente breve, porém profundamente sentido.”
Em Adam Smith em Pequim, a partir de uma visão heterodoxa, argumenta-se o ressurgimento chinês levaria à concretização da ideia, supostamente pregada por Smith, de uma equalização de poder entre o “Ocidente” e o “Oriente”. O caminho adotado, pela China, para que isso acontecesse, contradiz o entendimento tradicional relativo aos processos de desmonte de economias socialistas-comunistas. No livro de Arrighi, esclarece-se essa questão por meio de uma comparação com os Estados do espaço pós-soviético. Na Rússia e nas demais antigas repúblicas soviéticas, por exemplo, se realizou uma “terapia de choque”, com o intuito de firmar uma economia capitalista tão antes quanto fosse possível. Como comprovado pela História, essa decisão, fruto do neoliberalismo, acabou por prejudicar o pleno desenvolvimento desses Estados. Conforme argumentado por Arrighi, o incremento de poder por parte da China foi possível na medida em que o país rejeitou a política tradicional defendida pelo Consenso de Washington.
No caso chinês, optou-se pelo gradualismo — uma transição econômica a passos lentos, com a intenção de preservar a estabilidade social, bem como os níveis de emprego e bem-estar. Contudo, a inovação mais importante efetivada pela China refere-se ao fato de que essa política gradativa não se destinava, segundo Arrighi, à conquista de uma economia capitalista. Para o autor, existiria uma distinção — desconsiderada pelo senso comum — entre economias de mercado e economias capitalistas. Nas palavras dele: “…a não ser que o Estado tenha se subordinado aos interesses de classe deles [dos capitalistas], a economia de mercado permanece sem ser capitalista”. Na China, o Estado teria sido capaz de fomentar a iniciativa privada, por meio de instituições e dispositivos legais, porém sem fazer com que os anseios dela tomassem as rédeas dele. Arrighi, em sua obra, é categórico ao explicar a peculiaridade da economia de mercado:
Dessa forma, apesar da proliferação de trocas mercadológicas à busca de lucro, a essência do desenvolvimento na China não é necessariamente capitalista. Isso não significa, é claro, que o socialismo continua vivo e intenso na China Comunista, e nem que isso é uma consequência provável da ação social. Tudo o que significa é que, mesmo que o socialismo tenha sido derrotado na China, o capitalismo, por definição, ainda não venceu.
Como consequência desse caráter exclusivo ao desenvolvimento chinês, Arrighi desenvolve uma série de argumentos para analisá-lo. Segundo o autor, a China, ao contrário do “Ocidente”, teria iniciado uma “Revolução Industriosa”, a qual não seria um mero estágio anterior à “Revolução Industrial”, ubíqua no resto do globo. A política chinesa basear-se-ia não no emprego intensivo de capital e energia, porém na consolidação de um crescimento industrial que focasse no trabalho humano. Desse modo, de acordo com Arrighi, a China corresponderia a um local onde as ideias de Adam Smith — defensor das economias intensivas em trabalho — poderiam ser encontradas em termos práticos. A associação de Smith a Pequim é, sem dúvida, o legado mais controverso da obra de Arrighi, uma vez que o teórico liberal costuma ser academicamente relacionado ao tradicionalismo econômico do “Ocidente”. A partir dessa inovação teórica, alega-se que os modelos de previsão econômica utilizados, até então, no sistema internacional, são inadequados para o estudo da China. Com isso, por exemplo, se defende a noção de que uma eventual hegemonia chinesa poderia, inclusive, ser mais igualitária.
Percebe-se, assim, que a obra de Giovanni Arrighi propicia inúmeras ideias para a análise do desenvolvimento chinês contemporâneo. Por meio do trabalho com as ideias de Adam Smith, argumenta-se que esse processo difere consideravelmente das abordagens tradicionais da Economia. A China, anteriormente assolada pelas consequências da “grande divergência”, conseguiu reerguer-se ao apostar em inovações em suas políticas governamentais, as quais levaram a uma economia de mercado não capitalista. Por outro lado, o declínio gradativo da hegemonia americana — sinalizado pela Guerra do Vietnã, e posteriormente confirmado pela do Iraque — possibilitou vislumbrar o “reequilíbrio” entre “Ocidente” e o “Oriente”. Uma futura hegemonia chinesa, tal como desenvolvido por Arrighi, teria o potencial de manter relativo grau de igualdade econômica internacional. Dessa forma, ver-se-iam maiores benefícios para o “Terceiro Mundo” — a atual “jurisdição periférica” — ao longo do tempo. Com uma eventual liderança chinesa, portanto, ocorreriam profundas transformações na estrutura da economia política internacional.
Livreiro em Tianjin, uma metrópole do Nordeste chinês (Créditos: Travel Coffee Books | Licença)
Notas
- As citações diretas do texto podem ser encontradas, respectivamente, nas páginas 1, 332 e 24 do livro Adam Smith in Beijing, tal como referenciado abaixo. Todas as citações foram traduzidas livremente, por mim, a partir do original em inglês.
- A versão original deste artigo foi desenvolvida para a disciplina Política e Economia nas Relações Internacionais I, ministrada na PUC-Rio por Marcello Cappucci, no segundo semestre acadêmico de 2015.
Referências bibliográficas
- ARRIGHI, Giovanni. Adam Smith in Beijing: Lineages of the Twenty-First Century. Londres, Nova Iorque: Verso, 2007.
- ______. The Long Twentieth Century: Money, Power, and the Origins of Our Times. Londres, Nova Iorque: Verso, 1994.