O acordo de Paris é mais uma vítima do mundo em que vivemos

Por que não se empolgar com os resultados da COP 21?

07/01/2016 - Thiago Bittencourt

Os componentes dos sistemas políticos internacionais existem em relações de coordenação. Formalmente, cada um é igual a todos os outros. Nenhum está habilitado a comandar; nenhum é obrigado a obedecer. Os Sistemas Internacionais são descentralizados e anárquicos. — Kenneth Waltz (“Theory of International Politics”)


Reza a lenda que todo calouro de Relações Internacionais, nos primeiros dias de faculdade, ouve a máxima: “O Sistema Internacional é anárquico”. Isso aconteceu comigo, com milhões de estudantes, e ainda acontecerá com muitos outros. Aprendemos que “anarquia”, nesse caso, apenas significa a ausência de uma entidade que seja “superior”, em termos de hierarquia, aos diversos países do mundo. Nossa querida ONU, por exemplo, depende da boa-vontade dos Estados que a compõem. No dia em que muitos estiverem insatisfeitos com ela, você pode ter certeza: ela acabará, ou, pelo menos, vai sofrer um forte boicote, sem dó nem piedade. Por causa dessa liberdade de ação dada aos países, nossa vida política internacional tem permanecido relativamente estável. Isso tudo começou há séculos, quando inventaram o conceito de “soberania estatal”.

O problema é que a soberania é uma faca de dois gumes: ela permite, com ressalvas, a convivência entre sociedades (supostamente) distintas entre si; mas ela também finge estabelecer uma igualdade de poder que inexiste. No papel, com algumas exceções, todos os 193 membros das Nações Unidas têm a mesma importância. Para a maior parte das iniciativas da ONU, eles devem ser tratados da mesma forma. É a versão internacional daquele pressuposto clássico de várias constituições pelo mundo: “Todos são iguais perante a lei”. A gente sabe que isso é mentira. Dentro dos territórios nacionais, podemos ver pessoas diferentes, sujeitas a uma série de desigualdades sociais, impostas inclusive pela lei — algumas razoáveis; outras nem um pouco. Conseguimos viver em sociedade, sem graves problemas, porque geralmente há quem estabeleça o mínimo de bom-senso e justiça entre nós. O Estado tem a capacidade de fazer esse tipo de coisa. A ONU não chega nem perto disso.

Nosso mundo é composto de centenas de Estados diferentes. Cada um carrega consigo seus próprios interesses, junto com certo poder e influência para concretizá-los. No Sistema Internacional, a não ser que você não tenha “moral” alguma, ou que alguém esteja de olho em seus recursos naturais, é muito difícil que contrariem seus desejos. Para as discussões sobre temas genuinamente globais, é a partir desse ponto que complicamos nossas vidas. Há pouquíssimo tempo, em Paris, centenas de representantes estatais envolveram-se nos debates sobre as mudanças climáticas, um dos maiores desafios ambientais deste milênio. Existe (praticamente) um consenso de que essas mudanças estão em andamento, são majoritariamente provocadas pela ação humana, e que devemos fazer algo para contê-las. O problema é que, para impedir o aquecimento global, precisamos mexer na estrutura da economia global. Isso é algo que ninguém se dispõe a fazer e, graças a “soberania estatal”, ninguém é obrigado a tomar a iniciativa.

Uma charge auto-explicativa. (Créditos desconhecidos | Licença desconhecida)

O acordo ambiental elaborado há pouco tempo em Paris tem sido exaltado porque representou um “consenso” entre as nações. Há narrativa mais bela do que 196 líderes globais, por livre e espontânea vontade, harmonizando seus interesses em prol de um planeta melhor? Esse tipo de discurso é perfeito para passar adiante uma imagem de união humanitária, no estilo pregado pela ONU. Em termos práticos, porém, sabemos que a questão ambiental está no fim da hierarquia temática da diplomacia global. Nas raras ocasiões em que ela recebe o mínimo de atenção, provavelmente tem muito “marketing verde” envolvido. O discurso de “vamos mudar o mundo” é tão bonito que até o capitalismo de ponta se associa a ele. Vai me dizer que você jamais viu um produto “sustentável”, “ecológico” ou simplesmente “verde” por aí? Os verdadeiros atos pró-meio ambiente geralmente geram prejuízos à economia, mas, se a gente apenas fingir que agimos ecologicamente, podemos inclusive lucrar alguma coisa.

Não é à toa que a Conferência de Paris teve alguns patrocinadores bem inusitados. Sabemos que a aviação e a indústria automobilística global são alguns dos culpados pelas emissões de gases estufa. Por mais incrível que pareça, esses setores econômicos estavam lá em Paris, representados, por exemplo, pela Air France e pela Renault-Nissan. Sabe a Volkswagen, recentemente acusada de fraudar as inspeções de poluição veicular? Ela estava lá também, com propagandas em tudo quanto é material relacionado ao evento da ONU. Um grupo ativista britânico aproveitou a ironia para espalhar pelas ruas parisienses alguns cartazes de protesto, como este:

“Dirija com menos poluentes. Ou apenas finja fazê-lo. Mentimos sobre nossas emissões porque não nos importamos com a mudança climática. Mas não somos os únicos.” | Cartaz crítico, simulando uma propaganda da Volkswagen.
(Créditos do cartaz: Brandalism | Licença desconhecida)

No meio de um evento complexo, recheado de ligações com as indústrias poluentes, realizado por vários Estados ávidos por “desenvolvimento”, é difícil acreditar na elaboração de um tratado realmente transformador. Se a gente fosse ler as letras miúdas do Acordo de Paris, perceberíamos que se trata, no máximo, de um consenso de boas intenções. Os prováveis signatários reconhecem a importância de “estilos de vida, de consumo e de produção sustentáveis”, e se dispõem a estipular “metas de contribuição nacional” para o meio ambiente. Sem dúvida, essas “metas” não podem ser tão irrisórias a ponto de invalidar a essência do acordo. Mesmo assim, nada indica que os países adotarão os melhores objetivos possíveis. E mesmo que as intenções previstas sejam boas… caso um Estado não as cumpra, o máximo que pode acontecer é uma humilhação pública. Nada de sanções, restrições, ou qualquer outro tipo de punição.

Esse caráter “voluntário” do Acordo de Paris talvez tenha sido o fator mais importante para a aprovação dele. No final dos trâmites da conferência, o vocabulário utilizado pelo tratado ainda estava em discussão. Numa conversa com o gabinete presidencial francês, a delegação dos Estados Unidos foi bem clara: qualquer texto juridicamente vinculante seria rejeitado sumariamente. A determinação americana foi tão importante que, do nada, o texto final sofreu uma bela alteração na parte que fala sobre o papel relegado aos “países desenvolvidos”. Em vez de constar um “shall” (palavra que exprimiria obrigação aos Estados), os franceses colocaram um “should”, removendo todas as ordens jurídicas que existiam antes. Oficialmente, disseram que o motivo da alteração era a mera correção de um “erro técnico”. Houve, é claro, quem duvidasse desse relato:

Todd Stern: It's a "very interesting mystery" why 'should' changed to 'shall'. "It doesn't happen on auto-correct" — Edward King (@edking_CH)

O resultado disso tudo é a formulação de um acordo insuficiente, cheio de brechas legais que podem ser exploradas pelos Estados. A gente comemora o reconhecimento unânime dos problemas representados pelas mudanças climáticas, mas, simultaneamente, temos vários motivos para lamentar. Pelo jeito, os Estados mais “desenvolvidos” do globo ainda se recusam a assumir compromissos ambientais públicos. Por trás da linguagem não vinculante, perpetuam-se as práticas poluentes, disfarçadas por meio de iniciativas de marketing. Propaga-se uma mensagem positiva, quando as verdadeiras ações estatais estão muito longe de restringirem as mudanças climáticas. O próprio acordo de Paris, por exemplo, só entrará em vigor após a ratificação de, pelo menos, 55 países¹. Até que isso aconteça, não existe, nem mesmo, uma meta ambiental voluntária. Será que um acordo desses representa “sucesso”?

Sessão de encerramento da COP 21, em Paris. Os responsáveis pela conferência comemoram o trabalho realizado. (Créditos: COP 21 | Domínio público)

Notas

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