A era do sofá: o humanitarismo desfigurado, simplificado e negligenciado

Até que ponto nossas doações às ONGs humanitárias são realmente positivas para o mundo?

25/10/2015 - Thiago Bittencourt

Campo de refugiados na Jordânia, destinado a migrantes sírios. (Créditos: “U.S. Department of State” | Domínio público)

Há alguns dias, eu estava sentado no sofá da minha casa, num dia comum como qualquer outro. Navegava pela “App Store”, aquele reduto digital no qual a Apple anuncia e vende milhões de programas diariamente. No meio das inúmeras ofertas, deparei-me com algo, no mínimo, inesperado. Um quadradinho, em segundo plano, anunciava: “Ajude os refugiados. Faça uma doação agora”. Era cortesia da Cruz e do Crescente vermelhos, aquela organização não governamental (ONG) que surgiu em meados do século XX, na esteira do trabalho pioneiro de Jean-Henri Dunant. Talvez pareça irrisório, porém isso foi a última gota d’água para que eu expressasse um pensamento que já rodeava minha mente há tempo – a ideia de que, direta ou indiretamente, nossas ações humanitárias, geralmente, acabam perdendo seu sentido (isto é, quando elas, de fato, existem).

Os anúncios que vi na App Store. Humanitarismo reduzido a um mero clique num botão. (Foto própria | ©)

Henri Dunant arrumou motivação para seu trabalho em Solferino, no Norte italiano. Quando o suíço visitara a região, lá em 1859, uma mortífera batalha ocorria. A experiência foi tão chocante que, no final das contas, ele resolveu relatá-la num livro, alguns anos depois. Em Memória de Solferino, no meio da triste narrativa sobre a guerra, era proposto que se formassem “grupos de alívio”, os quais seriam encarregados de trazer, ao menos, um pouco de humanidade para os conflitos globais. Os feridos receberiam tratamento médico adequado, haveria assistência aos civis presentes no imbróglio, e o fenômeno da guerra receberia uma série de complementos que, até então, inexistiam. Não é preciso ser gênio para descobrir o que sucedeu o nascimento da organização de Dunant – desde aquela época, proliferaram-se ONGs e outras entidades com propósitos similares.

Creio que a maioria do trabalho humanitário dessas organizações (e de nós, enquanto indivíduos) se desenvolve em duas vertentes: conscientização e remediação. Por “conscientizar”, refiro-me a práticas discursivas que não influenciam, instantânea e diretamente, a realidade que nos cerca. Esse seria o caso de várias campanhas da iniciativa “Humaniza Redes”, encabeçada por nossa Secretaria de Direitos Humanos, em uma página no Facebook. Evidentemente, o maciço “curtir” e “compartilhar” de determinada publicação contribui para difundir uma mensagem humanitarista que, de outro modo, não teria grande audiência. No imaginário popular, por exemplo, a adesão geral a algo como o “Celebrate Pride”, do próprio Facebook, é mais perceptível do que o texto no qual os juízes americanos da Suprema Corte defendem a legalidade do casamento gay.

Algumas das imagens da campanha “Humaniza Redes”: importantes, é claro, porém insuficientes para assegurar o pleno respeito aos Direitos Humanos. (Reprodução: “Humaniza Redes”)

Sabemos, contudo, que uma invasão online das cores do arco-íris não adianta muito para impedir os abusos diários aos quais milhões de homossexuais são submetidos. Infelizmente, as manifestações discursivas, tanto dentro do âmbito virtual quanto fora dele, têm se mostrado incapazes de contribuir para a redução dos problemas humanitários – não somente no Brasil, mas também em diversos outros países. Por isso, para assegurar a primazia dos Direitos Humanos, é preciso fazer mais do que apenas transmitir certa mensagem. Até onde sei, a melhor ilustração disso advém de um diálogo em “Hotel Ruanda”, filme sobre o genocídio de 1994 no mesmíssimo país:

— Fico feliz por você ter feito essa filmagem [do genocídio], e pelo fato de que todo o mundo a verá. É a única maneira de termos uma chance para as pessoas intervirem.

— Sim, mas, caso ninguém intervenha, ainda acha que é algo bom para ser exibido?

— Como as pessoas não intervirão quando virem tais atrocidades?

— Acho que, caso as pessoas vejam essa filmagem, elas dirão “Meu Deus, que coisa terrível!”, e depois continuarão seus jantares.

É daí que vem a explicação para aquilo que denomino “remediação”. Quando nós, no conforto de nossos sofás, cedemos de 5 a 150 dólares à Cruz e ao Crescente vermelhos, confiamos que o dinheiro será revertido em ações favoráveis aos refugiados. Provavelmente, temos a expectativa de que financiaremos o trabalho de um Oficial de Elegibilidade (responsável por determinar quem, de fato, “merece” refúgio), ou, quem sabe, a construção de um alojamento para abrigar temporariamente os migrantes. Em geral, a “remediação” trabalha com a noção de que nossa doação – quando unida àquelas das outras pessoas – causará significativo impacto imediato. Não doamos para que criem um documentário conscientizador: nosso capital vai direto àquilo que acreditamos que fará a diferença – o trabalho de campo, as instalações físicas… o auxílio no sentido mais palpável possível. Os botões que os aparelhos Apple nos apresentam são o portal necessário para efetivar algo benévolo para o mundo; a máxima simplificação de uma tarefa extremamente complexa. Pior ainda – pode ser que limpemos nossa consciência ao clicar em um desses botões. De certa forma, o clique nos isenta de qualquer discussão humanitária mais profunda.

Os soldados “peacekeepers”, das Nações Unidas: provavelmente, uma das faces mais brutas do humanitarismo. Depois que um conflito recrudesce, enviam-se tropas para tentar reduzir as tensões. (Créditos: “Marie-Lan Nguyen” | Licença)

Acontece que as ações de remediação apresentam uma problemática que não é muito óbvia. “Remediar” significa, em termos brutos, atenuar uma circunstância já ocorrida – oferecer alívio aos afetados por um evento indesejado. Ao criar um campo de refugiados, por exemplo, somos impulsionados pelo nobre interesse em ajudar indivíduos que não têm culpa alguma pelos fatores que os levaram a se deslocar internacionalmente. Sem dúvida, esse campo terá resultados concretos para a vida de muitas pessoas. Há muitas razões para alguém optar pela ida a um lugar desses; não é todo canto do globo que desfruta da paz e da prosperidade. Nas palavras de Samira, uma senhora de 45 anos que decidiu escapar da Guerra Civil Síria e emigrou para o Líbano, acompanhada por alguns de seus filhos:

Decidimos vir ao Líbano por causa da luta que ocorria. Os bombardeios e tiroteios aconteciam enquanto tentávamos viver pacificamente, em nossas casas. Há oito meses, desde que deixei minha casa para trás, não tenho ideia do que aconteceu com ela. Simplesmente tivemos que a abandonar e escapar devido ao conflito… Inicialmente, eu relutava em me mudar para o Líbano. Mudei, várias vezes, de ideia, porém, no final das contas, decidi vir até aqui. Não conseguíamos mais comida alguma, não conseguíamos viver, havíamos perdido nossos empregos e preocupávamos em não conseguirmos ficar vivos.

O que talvez surpreenda é que, atualmente, as condições de vida de Samira continuam a ser, praticamente, as piores possíveis. É algo tão desumano que, embora ela tenha escapado do caos sírio, um de seus desejos é que seus “dias finais” cheguem logo. Há quem argumente que Samira é uma exceção; e que o ambiente do campo de refugiados fornece política ideal para proteger aqueles que, de outro modo, sofreriam ainda mais. Com relação a esse ponto, expresso veemente discórdia. O campo de refugiados é provavelmente uma das melhores encarnações de um problema clássico das concepções predominantes de humanitarismo: o simplismo de nossas ações. Tal como um remendo, o campo está lá com o intuito de oferecer auxílio após a eclosão de um problema. Suas tendas e barracas têm caráter provisório – muitos países receptores dessas instalações, aliás, fazem questão de enfatizar isso. Quando as estruturas temporárias colapsam, por exemplo, cabe aos próprios refugiados construir novos abrigos. Isso não parece ser uma “política ideal”.

Num artigo recente para o New York Times, Ben Rawlence relata como que diversos campos, embora existam há décadas e abriguem milhões de pessoas (para ser justo com os números… 14 milhões), não têm previsão alguma de fechamento. A essa altura, convenhamos: eles já perderam seu caráter provisório em praticamente tudo, exceto na nomenclatura e no tratamento internacional que lhes é dado. Eles tornaram-se, de fato, imensas comunidades assoladas pela miséria, como inúmeras outras. Não poderia ser diferente, afinal, construir um campo de refugiados é uma atitude notadamente momentânea e efêmera, cujo objetivo seria enfrentar algo que não é nem momentâneo, nem efêmero. Não se encontra muito esforço para coibir as dinâmicas estruturais que, inicialmente, provocam as crises humanitárias; contudo, vá ao escritório de uma importante organização que atue no ramo do humanitarismo, e há grandes chances de ela falar o quão disposta está a prestar assistência aos necessitados, após o sofrimento deles.

Campanha do Programa Alimentar Mundial, visando à obtenção de recursos para suprir a fome dos refugiados sírios. Apela-se à emoção, porém o resultado da iniciativa não garante a paz duradoura ao povo sírio. (Créditos: “WFP” | Domínio público)

A sensação de “trabalho cumprido” que o clique numa campanha de doações pretende nos dar é ilusória – essencialmente ilusória. Ela está lá para nos reconfortar, no aconchego de nossos sofás, ao simular que fazemos algo de útil para a humanidade. Sem dúvida, devemos louvar o trabalho humanitário de remediação; sem ele, falamos em termos de milhões (ou será bilhões?) de vidas ainda mais arruinadas. Por outro lado, parece ser demasiadamente ingênuo acreditar que o punhado de dólares destinados aos refugiados árabes fará verdadeira diferença. Em considerável parte das unidades de refúgio que existem no mundo, por exemplo, a escala de trabalho é tão intensa que elas não conseguem lidar com a quantidade de pessoas chegando. Isso foi o que aconteceu no Texas, na cidade de McAllen: o influxo de migrantes latino-americanos aumentou tanto que o governo local precisou de ajuda privada (e religiosa) para sanar as dificuldades que sucederam o desembarque deles no solo estadunidense. Portanto, se não há como confiar no trabalho de remediação nem para o fornecimento de alívio temporário, o que faremos na busca por soluções definitivas, as que realmente contam?

Talvez tenhamos passado da época de levar a sério aquilo que já se arraigou ao senso comum: “prevenir”, indiscutivelmente, é melhor que “remediar”. Agora nos falta, é claro, reunir forças para contrastar a prática predominante no campo do humanitarismo de grande porte – o apelo às soluções paliativas, efêmeras, e constantemente ignoradas por todos. Em vez de defender mecanismos ineficientes de proteção dos afetados por guerras civis, por exemplo, por que não criar um ordenamento jurídico internacional que impeça o escalonamento desses conflitos? Com essa postura, teremos o mínimo de esperança possível para vislumbrar um futuro no qual a cultura do humanismo de sofá seja rechaçada, em prol da verdadeira transformação do status quo. Assim, em vez de apenas nos sentirmos bem com uma doação que não coibirá novos problemas humanitários de grande escala, teremos o prazer de, realmente, termos feito a diferença para o mundo.

Notas